Imensidão, azul, plenitude, totalidade… tudo isto sentia a Alma, que no meio das suas iguais, se distinguia…
Mais leve, mais bela, mais pura, esperava pacientemente, que mais uma vez, a mandassem baixar à Terra.
Qual seria a próxima missão? Quando partia a Alma ía cansada, e carregava grandes e pesados fardos consigo… mas, logo que alcançava o topo, uma leveza e uma paz se apoderavam dela, tudo se desvanecia e a Alma encontrava outra vez o seu lugar, lá em cima, no alto da montanha.
Até lá chegar, os caminhos eram longos e duros, por vezes íngremes ou planos, verdejantes em mil tons de verde ou cinzentos e negros.
Eram claros e limpidos, tais cursos de água movendo-se rapidamente em cascatas, ou escuros, lentos e parados como pântanos lodosos.
Sucediam-se os tempos e a Alma assim vagueava por entre prazeres e dores, alegrias e tristezas, clareza e obscuridade, sabendo sempre que o topo da montanha a esperava.
Sabia também, que algures, num tempo que não conhecia, iria finalmente ascender ao infinito pleno onde poderia permanecer fazendo parte do Universo imenso.
Era uma vez um homem à espera.
O homem estava sentado numa pedra à beira da estrada e esperava…
Porque esperava ele?
Por quem esperava ele?
O que esperava ele?
A isso não podemos responder…
Apenas sabemos que esperava!
Os dias, as horas, os minutos, os segundos, todos os tempos passavam sem que ele movesse um só dedo!
Mudo e quedo o homem esperava…
Sucediam-se sóis e chuvas, escuridões e claridades, ventos e calmarias e nada o demovia da sua longa, eterna espera.
Até que um dia de sol quente e brilhante, o homem pestanejou, rodou lentamente a cabeça e olhou para trás.
Atrás de si viu tudo!
A sua vida passada em que ousou ter sentimentos: inúmeras tristezas, imensas alegrias, longas guerras, mais longas acalmias, lágrimas muitas, sorrisos sem fim…
Porque temia então, há tanto tempo, regressar à sua vida passada e esperava agora imóvel, naquela rocha?
Olhou em frente e viu o futuro!
Este era belo, de muitas cores, rico, perfumado, calmo e cheio de luz!
Porque esperara então?
Esperara até poder vê-lo!
Só agora, depois de tanto tempo parado, imóvel, expectante, conseguia ver o futuro.
Valera a pena a espera e o homem, lentamente levantou-se e seguiu o seu caminho!
Um minúsculo, ínfimo, ponto luminoso percorre o teu corpo.
De Norte a Sul, de Leste a Oeste, do centro à periferia, ele faz o seu caminho. Entra em atalhos, estreitas passagens, becos sem saída e, rapidamente retrocede e encontra largas e amplas vias.
O ponto de luz não pára, o seu percurso é incessante, contínuo, ora rápido, ora lento, mas sempre vívido e brilhante.
Súbitamente ressoa, vibra, sente outro corpo luminoso aproximar-se e encontra uma vibração comum.
Ambos então, encerrados nos seus continentes, vibram em sintonia e ficam mais velozes e mais brilhantes. Um após outro, sucedem-se encontros com outros seres de luz que numa longa e profunda espiral energética unem os seus campos de vibração.
Cada um de nós encerra em si mesmo um Universo único, irrepetível, que eternamente se perpetua e que vibra em uníssono ao encontrar energias semelhantes.
A esta vibração imaterial etéria, profunda e luminosa chamamos Amor, Fraternidade, Alegria, Encontro de Almas gémeas que em si guardam o segredo da vida.
O Universo és tu! Tudo o que existe no Universo está em ti! Apenas é necessário encontrar o Caminho e sentir a vibração dos pontos de luz que nos rodeiam e que, tal como tu, contêm o Universo!
Estávamos todos dentro dum círculo de giz branco num fundo negro.
Ninguém podia pôr os pés fóra do círculo de giz ou seria engolido pelo abismo.
Ouviam-se cânticos índios, todos cantavam e dançavam em volta de uma grande fogueira.
Os antepassados foram invocados e rapidamente alguns caíam em profundo transe.
A noite negra e estrelada rodeaxa o círculo de giz como se este estivesse perdido, solto, no meio do Universo.
Lentamente o círculo de giz ia rodando e arrastando todos com ele, como uma bola de neve gigantesca.
Do círculo saía uma luz intensa, branca, brilhante, numa explosão de vida, de força de energia.
Os cânticos ressoavam e um cheiro intenso de muitos aromas pairava no ar.
Todos estavam felizes, unidos, juntando os seus ancestrais saberes, para assim poderem evoluir como seres únicos e portadores dum segredo Universal.
Da união energética, fraterna, única, entre estas almas nasce uma cadeia de amor e protecção incondicional que, a pouco e pouco , vai mudando o Mundo.
Pela manhã passeava pela estrada e olhava os caminhos que desconhecia, ía atenta para não me perder, seguindo pelo trilho assinalado.
Com atenção focada no que estava à volta, no ranger dos ramos das árvores, no cantar dos pássaros, na variedade de tamanho dos cogumelos que brotavam da terra húmida, nos tons de verde que tornavam aquele lugar singular, conseguia ao mesmo tempo ouvir a minha respiração no silêncio que me envolvia.
Não me esquecia de cada passo que dava porque, ao calcar as pedras irregulares nas quais tantas vezes tropecei, por estas teimarem em não abrir caminho à minha passagem – o que daria muito jeito -, ia sentindo o quanto o caminho era tortuoso! Numa ou noutra vez até me fizeram ir ao chão. Limpava os joelhos e continuava determinada em prosseguir.
Vieram os temporais, as chuvadas intensas, os caminhos difíceis de trilhar, veio a vontade de desistir… mas o sol acabava por brilhar, mesmo que não estivesse visível, aquecia o meu coração e aos poucos envolvi-me naquela paisagem paradisáca e fui-me abstraindo, ao longo do trilho, de tudo o que me rodeava, pois já estava em unidade com o meio.
Um certo dia dei por mim como que obstinada, a caminhar na direção duma pedra que vislumbrava lá ao longe, como se ela me chamasse… cheguei perto e observei… era muito bonita! Via-se que escondia algo dentro dela, algo valioso!
Decidi parar e ficar a contemplar. Passei dias e dias…
O que aquela pedra fazia no meu caminho? E que pedra especial era aquela?
Mais e mais perguntas invadiam a minha mente…
Peguei nela e fechei-a na mão, num gesto que egoisticamente dizia: “és minha!” Não podia perdê-la, queria sentir o que emanava dela.
Fui abrindo a mão aos poucos e permitindo que respirasse, que tomasse forma, que existisse tal como é, com a dureza que a carateriza, porém, com um valor inestimável pela grandiosidade da sua essência.
Ao mesmo tempo observei-a de várias perspetivas, vendo para lá da sua beleza, daquela beleza que todos podem apreciar… Já não está prisioneira do meu olhar, nem do enrijecimento das intempéries…
Guardei essa pedra preciosa junto ao meu coração até hoje…
Todos somos árvores, caminhos, flores, pedras… e Pedras Preciosas!!!!
Era uma vez uma ostra que vivia no fundo dum mar lamacento e escuro.
Era difícil chegar-lhe a luz do sol, a claridade da água e a quentura das correntes.
Vivia na escuridão, no silêncio e no frio…
Os anos foram passando e a ostra fazia o mínimo para sobreviver.
Certo dia a ostra sentiu-se vacilar e soltar-se dos limos onde tinha vivido.
Veio uma violenta corrente, quente, poderosa, luminosa e arrastou-a para outras águas.
De início sentiu-se perdida, sem saber para onde ía… até que parou numa superfície macia, quente, translúcida e bela.
Onde estou?
Que lugar é este?
Nunca imaginei que existisse um lugar assim… será que morri?
A pouco e pouco foi-se abrindo, cada dia mais, até que sentiu um pequeno grão de areia, que naquele turbilhão, tinha entrado na sua concha.
Todos os dias o acariciava e beijava, falando-lhe de como se sentia feliz nesta nova vida.
Tinha luz, calor, transparência, alimento e o grão de areia ouvia-a atentamente e de dia para dia ia cescendo.
Uma bela manhã a ostra olhou para o grão de areia e viu que ele se tranformara na mais bela pérola que alguma vez vira.
Sentiu que por mais difícil e triste a vida tem sempre algo de precioso escondido, o que importa é ser capaz de se deixar levar pela corrente, sem medos, porque da escuridão e do lodo pode surgir a mais bela pérola do Oceano.
Leonor Braga
O corpo era grande desajeitado, descoordenado, desgovernado, desnorteado, desengonçado, desmembrado, desalmado…
Seguia na sombra, na penumbra, oculto por entre os esconsos, os becos…
Entrava em tocas, buracos negros que o sugavam para o fundo. Até ao centro da terra.
Lá, bem no fundo, onde tudo era escuridão, solidão e desnorte, estava ele.
Não via, não ouvia, não cheirava, não tocava, não saboreava, não sentia….
O Corpo era uma massa perdida e informe.
Apenas conseguia pensar…
Mas não sabia o que pensar, como pensar ou para que lhe servia pensar…
Pensou então, que estaria ele, O Corpo, a fazer no centro da terra?
Porquê?
Para quê?
Começou letamente a tentar organizar o pensamento, mas tudo se desvanecia e transformava em névoa que desaparecia à sua volta.
A escuridão, que apenas pressentia, começou levemente a clarear, o silêncio, que só até ali conhecia, começou a marulhar, do ar parado nasceu uma suavíssima brisa, algo etéreo e doce invadiu O Corpo e começou a talhá-lo.
Tal escultor excitado e vibrante com a sua obra, o trabalho da Alma começara.
A pouco e pouco os sentidos iniciaram o seu despertar, pela fenda da terra Mãe uma luz resplandescente elevou o Corpo para a terra.
Uma força enorme puxou-o e finalmente ele viu a luz,os aromas, saboreou o sangue, ouviu a voz da mãe, e sentiu umas mãos quentes e doces em contacto com a sua pele.
Finalmente o Corpo tinha Alma!
Leonor Braga
Era véspera de Natal, dia 24 pela manhã, lá iam eles cumprir com aquela que já era uma tradição da mãe, com os seus filhos e sobrinhos.
Era aquele dia do ano que servia para reforçarem os laços e perpetuar as memórias para toda a vida.
Fizesse chuva ou frio, não era a intempérie que os impedia de fazerem aquilo a que se propunham todos os anos.
Iam com os corações cheios e o porta-bagagem com mantas, roupas, comida, flores…
Para contrabalançar o assalto aos centros comerciais, as compras, os doces, o corre-corre da época, eles moviam-se descompassados, dando tempo ao tempo, vivendo intensamente cada minuto daquele dia e absorvendo cada vivência.
Havia um roteiro pré-definido, em primeiro lugar iam aos cemitérios, onde cuidavam e colocavam flores nos familiares (bisavós, tias e tios) e amigos.
Só essa caminhada realizada entre o frio e o vento – onde habita uma estranha paz e se contavam histórias e se fortificavam as raízes – foi a forma que encontraram de prestar homenagem às suas vidas.
“Conta mais!” Diziam eles, com aquela curiosidade que carateriza as crianças. Via-se nos seus olhos que se construíam em cada memória, em cada história…
A Mãe acreditava que para sermos como árvores fortes que resistem às tempestades precisavam de conhecer cada fio da sua raiz, para que esta possa buscar o alimento que precisa para permanecer robusta e viçosa.
“A nossa vida faz parte de um sistema que se constrói a partir de cada antepassado, onde as suas histórias de vida, os seus segredos, as mortes precoces, a dor, as vitórias e conquistas… tocam no nosso eu…” Estas eram só algumas das muitas explicações que a Mãe dava e que os Filhos e os Sobrinhos escutavam como se escuta uma música que se gosta muito!
“É importante reconhecer a importância de cada pessoa da nossa família, mas chegou a hora de não nos esquecermos de todos os que sofrem e todos aqueles que abdicam das suas vidas para cuidarem dos enfermos e dos desfavorecidos…”.
Esta conversa antecipava a ida à porta do hospital, onde sempre faziam um minuto de silêncio (acabava por ser sempre mais), desejando e enviando toda a energia translúcida das suas almas.
Com sentimento de pesar por todos aqueles que não tinham a sua sorte, continuavam a viagem.
Quando as luzes de Natal já brilhavam nas ruas, entregavam cobertores, roupas quentes e uma pequena ceia a cada sem abrigo que encontrassem…
“Tia, tia, porque está a desfazer o bolo e a dar ao cão?” Perguntava o sobrinho muito triste, ao ver aquilo que entregavam com tanto amor ser dado ao animal.
“Sabes, as pessoas que vivem nestas condições já passaram por muito, é natural desconfiarem das nossas intenções, ou, quem sabe, se quis partilhar com o seu melhor amigo? “ Explicou a tia, duvidando da segunda opção.
Quando caía a noite, de regresso a casa, entre as luzes dos faróis que se cruzavam numa azáfama única, o silêncio imperava, mas o ruído dos pensamentos fazia sentir-se…
Já na consoada e em família, a Mãe sentia que o corpo vivia aquele momento, mas a Alma, essa, leve como uma pluma e sem ninguém dar conta, encontrava-se com o Espírito do Natal e juntos pairavam em cada lugar, revisitavam cada pessoa, viviam de novo cada instante…
Cristina Santos
Ali estava ele. Só. Desolado. No meio do deserto imenso…
Areia, pedras, pedras, areia… olhar perdido no vazio.
A noite descia repentina e gélida sobre o deserto escaldante.
Então, o céu estrelado, tudo envolvia.
Só céu redondo, escuro, profundo, longínquo…
Aqui e além o brilho das estrelas e da lua davam-lhe luz.
Uma luz azul, branca, por vezes trémula, ou insidiosa e forte sobre a sua cabeça.
Silêncio… um silêncio de morte rodeava o homem.
À sua volta o deserto jazia mudo e frio.
Levantou-se um vento intenso que lhe trazia grãos finos de areia.
A pouco e pouco sentiu-se envolver por ela… morna, doce, penetrante.
A sensação era boa. Lembrava-lhe a praia… quando há muitos anos atrás ia para a praia adorava rebolar-se na areia.
Molhava-se, nadava e quando chegava à areia rebolava-se nela.
Por vezes escavava um buraco, em forma de caixão, e metia-se nele.
Cabeça de fora, coberto de areia. Era uma sensação tão boa…
Regredia assim a um mundo de envolvências, sentires, doçuras indizíveis e ondas de prazer.
A praia, a praia, aquela praia longínqua da sua infância…
Era uma praia linda, imensa, com ar selvagem e extenso areal. Rochedos pontiagudos, escarpas agrestes, mar bravio.
Por vezes, no Inverno, passava horas sentado a olhar o mar. Esse olhar descansava-o, amansava a sua dor, aplacava a sua imensa ansiedade e fazia-o mais feliz!
E o vento, batendo-lhe na face, lembrava-lhe que estava vivo.
Como era bom esse vento salgado, que o salpicava, o inundava, o despertava insistente… Acorda, acorda… olha à tua volta, ousa viver… não tenhas medo – sussurrava ele. O vento fora determinante na sua vida.
Ouvia muitas vezes dizer – “Oh que vento irritante! Este vento que desagradável!”
Não entendia. Para ele o vento sempre fora um aliado. Trazia-lhe vida, força, rumores de terras longínquas, cheiros, odores misteriosos, folhas, flores, pássaros em debandada, insectos, borboletas, pétalas perfumadas…vozes e choros, cantos e música… Ai o vento poderoso e indomável como ele gostaria de ter sido.
Do mar chegava-lhe o cheiro a algas, peixes, anémonas, de monstros marinhos ocultos e escuros, o prazer e o medo numa confusão de sentimentos que não conseguia separar.
A força do mar a sua brutalidade e poder contrastando com beleza, suavidade, doçura, profundidade…
Cada onda que ia e vinha na praia, lhe trazia um pouco de tudo: algas verdes, vermelhas, castanhas, pequenas conchas, esqueletos, ossos, espinhas, peixes mortos, lixo… e a espuma branca e etérea apesar de todos estes despojos, permanecia ali até ser levada pelo vento….
Vítor escolhera morrer.
A meio da vida, em plena crise de meia-idade, encontrava-se num beco sem saída… ou por outra, a única saída que encontrara era a morte.
Pensou numa estratégia.
Como fazê-lo? Onde? Pensou e lembrou-se do deserto. Ele adorava o deserto. Traçou um plano.
Iria para Marrocos, onde passaria uma excelente semana de férias, e faria uma excursão ao deserto.
Durante a noite iria perder-se do acampamento e de manhã ninguém o voltaria a encontrar.
Perder-se-ia até à morte.
Belo e romântico plano. Assim iria ser.
Reuniu os amigos na casa de Lisboa, sobranceira ao Tejo, onde tinha sido medianamente feliz. Fez um jantar requintado e entregou a cada um objecto da sua casa.
Disse que tinha coisas a mais e queria renovar a decoração… Os amigos um pouco perplexos aceitaram agradecidos.
– Olha se não gostarem pelo menos lembram-se de mim – O Vítor aquele chato que nos dava imensas secas quando já estava toldado. Um sonhador, um idealista…
Vítor nascera no Alentejo profundo perto de Beja. Calor sufocante no Verão, frio gélido no Inverno. Terra de extremos.
Estudara em Beja e cedo se pôs a caminho de Lisboa. Queria conhecer Mundo. Por sorte inscreveu-se na Marinha e assim correu realmente o mundo em viagens de circunavegação onde quase tudo ou quase nada acontecia.
Vítor fartava-se de tudo rapidamente.
Apaixonou-se por duas ou três sereias mas a coisa corria sempre mal…vá lá saber-se porquê?
Azar ao amor, dizia ele…
Foi, assim, ficando cada vez mais só e fechado sobre si mesmo.
Essa circunavegação sentimental acabava por levá-lo sempre ao ponto de partida.
Cada vez mais solitário… a vida ia perdendo as cores e o encanto.
Adorava chegar à varanda e ver o Tejo. Brilhante, por vezes com reflexos prateados, azuis, correndo, sempre correndo para o mar que ele conhecia.
Mas a pouco e pouco nem isso o animava…
Os escassos amigos que tinha tentavam em vão desafiá-lo para programas tentadores mas Vítor raramente se lhes juntava.
Preferia ficar em casa, a ouvir música, beber um bom vinho e sonhar.
Como seria a vida dele dali a dez anos? Nem queria imaginar.
Um quadro negro abria-se-lhe diante dos olhos, só via escuridão. Vazio. Solidão. Nada. Desespero.
O que me resta? Vou fazer a tal excursão enquanto ainda posso apreciar a paisagem e depois desapareço.
Vento e mar… e ele ali perdido no deserto. Todos dormiam, a noite ia longa e fria e Vítor continuava a deixar-se embalar por estas lembranças longínquas.
O plano estava em acção. Decorria conforme o previsto.
Tudo se conjugava para que resultasse. Lá vaguearia só, perdido até à morte.
Nesta noite longa e fria toda a sua vida se lhe mostrara como num filme em que ele era o protagonista.
Como um estranho revia as imagens, sensações, sentimentos de que se compunha a sua vida até aquele dia.
Mais uma vez embalado pelo vento, iluminado pelas estrelas e fundido com o deserto se sentia parte integrante deste espaço vazio e oco onde escolhera ficar para sempre.
A pouco e pouco uma ténue claridade rompia o horizonte. Madrugada já? Vítor perdera a noção do tempo.
Também pouco lhe importava o tempo conceito relativo e efémero a que quase todos os homens se agarravam.
O que era o tempo afinal? Será que existia um tempo? Ali estava ele fora do tempo.
Despojado de tudo, apenas protegido pela jhilaba comprada em Marraquexe, descalço, deitou-se na areia olhando o infinito.
A Estrela d’Alva despontava já, trémula no meio dos outros corpos de luz, que hesitantes se iam esbatendo no espaço.
Fechou os olhos e sentiu.
Lembrou-se de Ana… uma das suas grandes paixões, talvez a mulher com quem se sentira mais feliz.
Deixou-se levar pela mão de Ana e percorreu o tempo que viveram juntos.
Tempo mágico, de paixão e entrega como mais nenhum outro na sua vida.
Ana era pintora e escultora. De uma sensibilidade indizível… doce, meiga, envolvente… era uma mulher invulgar. De grandes olhos cor de mel, cabelos escuros, longos e sedosos, corpo esguio e elegante, ar exótico… Ana fora o seu grande amor… agora se dava conta disso… só agora.
Ana veio resgatá-lo, relembrar-lhe de como o amor pode ser doce e envolvente e nos pode ressuscitar… Onde estaria? O que faria agora?
Porque razão lhe aparecera Ana agora?
Então Vítor entendeu… Ana captara o seu desespero e viera em seu auxílio. Ana queria-o de volta à vida.
Ao abrir os olhos viu despontar a Estrela d’Alva, agora clara e luzente, iluminando tudo à sua volta.
E viu Ana, etérea estendendo-lhe a mão e sorrindo – Vem, vem dá-me a mão, regressamos juntos ao acampamento… Vamos recomeçar!
Leonor Braga